Por: Thiago Mendes*
O Hospital Santa Ana (HSA), em Porto Alegre, conta com duas unidades de internação em saúde mental. Uma delas, a Unidade de Saúde Mental Feminina, vem em funcionamento desde 2009, quando a Associação Educadora São Carlos (AESC) assumiu compromisso junto à Secretaria Municipal da Saúde, ao locar uma área do Hospital Espírita, com 30 leitos, para o acolhimento de mulheres com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas. A outra, a Unidade Infanto, foi inaugurada com a abertura do HSA, em 2018, é dedicada a adolescentes masculinos que apresentem situações de emergência em saúde mental, incluindo quadros que passam por sintomas depressivos como práticas de automutilação e ideação suicida; problemas relacionados ao uso de drogas; momentos de desorganização mental ou comportamental; e quadros de agitação e agressividade que poderiam levar o paciente a pôr em risco a si ou a outras pessoas. Desde agostos 2018, as duas unidades estão dentro HSA, em prédios distintos.
Os dois dispositivos de atenção à saúde mental contam com o trabalho interdisciplinar das equipes de Enfermagem, Educação Física, Psicologia, Psiquiatria e Serviço Social, e operam em articulação com a Rede de Atenção Psicossocial do SUS. Os leitos regulados pela Central de Regulação Médica da Secretaria Municipal de Saúde.
Aos pacientes sob os cuidados dessas unidades hospitalares é oferecido um tratamento que visa contemplar na integralidade as suas demandas de saúde, considerando as diversas dimensões que compõem sua vida e a singularidade de seu sofrimento. Esse trabalho se dá, no âmbito que compete a uma internação em saúde mental, através da disponibilização de diversos dispositivos terapêuticos. Entre eles, estão grupos terapêuticos, atividades e exercícios físicos, jogos e brincadeiras, oficinas, cinedebates, acompanhamento psicofarmacológico, entrevistas individuais e atendimentos a familiares e serviços de referência do paciente. Tudo isso é oferecido em um ambiente cuja finalidade essencial é a promoção de cuidado, considerando rotinas de alimentação, sono e tempo de descontração entre as atividades diárias.
Complexidade da saúde mental
Ao se discutir saúde mental, é importante considerarmos que se trata de um assunto complexo. Por um lado temos, há já alguns anos, como conceito orientador para saúde, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), um estado de completo bem-estar físico, mental e social – que abre mão tanto de uma concepção de saúde como ausência de sinais de doença, como também atribui à saúde uma ideia de integralidade que aponta à imbricação entre as esferas física, mental e social. Por outro lado, também é verdade que encontramos, nos dias de hoje, uma série de preconceitos, desinformações e tabus relacionados ao tema.
Há mais de uma engrenagem que faz girar esses preconceitos em nossa sociedade. Podemos verificar a presença deles em conversas cotidianas, nas quais, não raramente, se confundem questões de saúde mental com um discurso moral. Episódios depressivos, por vezes, são taxados como “frescura” ou “fraqueza”, e problemas relacionados a uso de álcool e outras drogas como “sem-vergonhice” ou “falta de caráter”.
Certamente, ao menor em parte, tais preconceitos e desentendimentos têm suas raízes nas formas como a saúde mental foi tratada ao longo de nossa história. Sabemos que muito já se avançou nas práticas de cuidado desde a época dos manicômios e hospícios, e que vivemos um movimento de inovações que passam pelo campo das medicações específicas, até o das técnicas e abordagens terapêuticas oferecidas às pessoas em necessidade de suporte profissional. Ainda assim, chama atenção, talvez em especial para quem trabalha em espaços de saúde mental, a presença de certo fantasma dessa lógica manicomial, que acabava por desumanizar as pessoas com questões de saúde mental através da figura do “louco”, em algumas falas e pedidos de pacientes e de seus familiares.
Trabalhando na Unidade Infanto do Hospital Santa Ana, testemunhamos repetidamente a surpresa de adolescentes, muitos deles em um primeiro contato com qualquer serviço de cuidado em saúde mental, que imaginavam encontrar na internação hospitalar um ambiente bastante diferente do que veem na Unidade Infanto. Muitos imaginavam um “lugar de gente louca”, em condições precárias. Alguns chegam a imaginar mesmo que seriam maltratados. É chocante que tais pensamentos ainda persistam no imaginário social de nosso tempo. Também é comum encontrarmos, tanto por parte dos pacientes quanto por parte de seus familiares, a expectativa de que a internação hospitalar seja de longa duração, ou então, que ela seja, por si só, a “solução” para os problemas do paciente. Certamente a internação hospitalar pode significar para o paciente um momento importante de sua recuperação.
Se a internação hospitalar for pensada de forma desarticulada com outros serviços de atenção em saúde mental que possam acompanhá-lo em sua vida cotidiana, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e serviços ambulatoriais, dificilmente essa intervenção terá efeitos duradouros. A internação em saúde mental é um recurso para ser ativado em momentos de crise. No entanto, sabemos que não são só esses os momentos que merecem atenção em saúde mental.
A intervenção hospitalar, para além de proporcionar ganhos importantes da avaliação psicofarmacológica e da desintoxicação (em específico a pacientes com uma relação de dependência ao uso de drogas), representa um tempo de acolhimento a pessoas em situação de vulnerabilidade psíquica, quando não em vulnerabilidade psicossocial.
As situações em que se observam os preconceitos em relação à saúde mental, mencionados anteriormente, fazem efeito na própria experiência de sofrimento dos pacientes. É comum que eles cheguem à internação após um longo período de sofrimento silencioso, que não se fez perceber antes de se chegar a um estado agravado de adoecimento. Isso faz com que esse primeiro tempo de tratamento apresente desafios significativos, uma vez que muitas vezes o próprio paciente não se encontra em um momento de reconhecimento de suas dificuldades e de seu próprio sofrimento. Então, se faz necessário dar voz às pessoas, às suas histórias e experiências de sofrimento para, a partir daí, engajá-las, cada uma à sua maneira, em um processo de cuidado, apontando, desde a internação hospitalar, para a construção da continuidade do cuidado em serviço no território pelo tempo que se fizer necessário a cada uma.
(*) Psicólogo da Equipe de Saúde Mental do Hospital Santa Ana